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Como se comunicam as palavras na noite das imagens.
(foto: Anne-Lise Broyer)
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“De repente, algo aparece. Por exemplo, uma porta abre-se e uma borboleta passa batendo as asas. Basta este nada. E já o pensamento experimenta o perigo. Corre o risco de se enganar uma primeira vez, acreditando apropriar-se do que acaba de aparecer e abstendo-se, que é a desistência, desaparição. Por que é um erro acreditar que, uma vez aparecida, a coisa está, permanece, resiste, persiste tal qual no tempo, como no nosso espírito que a descreve e a conhece. Sabemos bem que não é assim: uma porta não se abre senão para a qualquer momento se voltar a se fechar, uma coisa não aparece, como uma borboleta, senão para no instante seguinte desaparecer. Mas o pensamento se desorienta uma segunda vez realizando com a coisa desaparecida a mesma abstração que com a coisa aparecida. Também aqui terá de se ter em conta o que se segue, quer dizer, a maneira como a coisa que já não está permanece, resiste, persiste tanto tempo como na nossa imaginação que a rememora. Como falar de um aparição de outro modo que não seja sob o prisma temporal da sua fragilidade, aí onde ela volta a mergulhar no obscuro? Mas como falar de uma aparição de outro modo que não seja sob o prisma temporal da sua fragilidade, aí onde ela volta a mergulhar no obscuro? Mas como falar desta fragilidade de outra maneira que não seja sob o prisma de uma mais sutil tenacidade, que é a força de assombração, de retorno, de sobrevivência?
Como os batentes de uma porta, como as asas de uma borboleta, a aparição é um perpétuo movimento de fechamento, de abertura, de novo fechamento, de reabertura… É um batimento… Uma vibração rítmica [myse en rythme] do ser e do não-ser. Fraqueza e força do batimento. Fraqueza: nada é adquirido, tudo volta a perder-se e deve ser retomado a cada instante, tudo tem sempre que ser recomeçado. Força: o que bate – o que se bate contra, o que se debate com – coloca tudo em movimento. Como a porta que deixa entrever um ente amado, adormecido no quarto, preservando, no entanto, o seu recolhimento; como as asas da borboleta lhe permitem voar; como o nosso coração escande a sua precursão de sístoles e diástoles; como a respiração, ela mesma, toma e devolve o ar necessário à vida. Toda aparição poderia, por isso, ser vista como uma dança ou como uma música, como um ritmo em todo caso, um ritmo que vive de se agitar, de bater, de palpitar, e que morre, mais ou menos, pela mesma razão. Também os agonizantes se debatem com eles próprios como uma borboleta que bate asas até o fim. A borboleta – particularmente a falena, essa borboleta noturna que se introduz pela porta entreaberta, dança em torno da luz e acaba por nela se precipitar e consumir – parece bem ser o animal emblemático de uma certa relação entre os movimentos da imagem e do real, ou mesmo de um certo estatuto, nem é preciso dizê-lo, da aparição como real da imagem. Não é por acaso que a borboleta, quase imperceptível porque mais não faz do que passar, serve de epígrafe às reflexões de André S. Labarthe sobre o caráter simultaneamente soberano e passageiro das imagens cinematográficas (fig. 1). É mesmo possível que, em toda tentativa de descrever uma imagem, qualquer coisa como um batimento de assas de borboleta venha dar um sentido a esse esforço, tanto quanto um limite. À semelhança da palavra phasma, a palavra falena carrega consigo os valores etimológicos da aparição, ou seja, da luz diurna que confere visibilidade (phaos, phôs) e do clarão noturno que torna imperceptível – clarão esbranquecido (phalos), brilhante na noite, ou negro manchado de branco (phalios) -, da fenomenalidade em geral (phaïnesthai), enfim, do fantasma e da imaginação (phasma, phantasia).
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Fig.1. Anne-Lise Broyer, Massais, 2004. Fotografia. |
Quase poderíamos arriscar a hipótese de que a cada dimensão fundamental da imagem corresponde, rigorosamente, um aspecto particular da vida das borboletas: a sua beleza e a infinita variedade de suas formas, das suas cores; a tentação e a aporia de um saber exaustivo sobre essas coisas frágeis e prolíferas que são as imagens e as borboletas; o paradoxo da forma e do informe contido na metamorfose – esse processo através do qual um verme imundo, uma larva, se torna múmia, ninfa, crisálida, para depois “renascer” no esplendor do inseto formado a que chamamos então, justamente, imago -; o jogo da pregnância e da saliência, da simetria e da simetria quebrada; o poder da semelhança e as rasteiras do mimetismo; o desperdício insensato das aparências e sua alteração fatal; o valor fantasmático e lendário em que a imago se antropomorfiza incessantemente; o movimento obstinado (batimento em torno de um eixo de simetria), dilacerante (fechamento-abertura) e, por fim, errático da imagem-borboleta; a fenda psíquica contida no jogo das suas aparições e desaparições; o desejo e a consumação que manifesta aos nossos olhos… E até ao próprio tipo de escrita, de saber, que tudo isto supõe. Eu próprio poderia por estabelecer uma ligação entre a minha obstinação na instabilidade – cada vez que, em âmbito acadêmico, me julgam amargamente: “Mas tu borboleteias!” – e o simples fato de consagrar a minha escrita às imagens”.
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Willian Fox Talbot. Asas de borboleta, 1839-1841. Calótipo (negativo) |
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Idem. Prova positiva. |
Em meados do século XVIII, Pomme tratou e curou uma histérica fazendo-a tomar “banhos de 10 a 12 horas por dia, durante 10 meses”. Ao término desta cura contra o ressecamento do sistema nervoso e o calor que o conservava, Pomme viu “porções membranosas semelhantes a pedaços de pergaminho molhado… se desprenderem com pequenas dores e diariamente saírem na urina, o ureter do lado direito se despojar por sua vez e sair por inteiro pela mesma via”. O mesmo ocorreu “com os intestinos, que, em outro momento, se despojaram de sua túnica interna, que vimos sair pelo reto. O esôfago, a traquéia-artéria e a língua também se despojaram e a doente lançara vários pedaços por meio de vômito ou de expectoração”.
E eis como, menos de cem anos depois, um médico percebe uma lesão anatômica do encéfalo e seus invólucros; trata-se das “falsas membranas” que frequentemente se encontram nos indivíduos atingidos por “meningite crônica”: “Sua superfície externa aplicada à lâmina aractnóide da dura-máter adere a esta lâmina, ora de modo muito frouxo, e então elas podem ser separadas facilmente, ora de modo firme e íntimo, e neste caso é às vezes difícil desprendê-las. Sua superfície interna é apenas contígua à aracnóide, com a qual não contrai união… As falsas membranas são frequentemente transparentes, sobretudo quando muito delgadas; mas habitualmente apresentam uma cor esbranquiçada, acinzentada, avermelhada e, mais raramente, amarelada, acastanhada e enegrecida. Esta matéria oferece quase sempre matizes diferentes segundo as partes da mesma membrana. A espessura dessas produções acidentais varia muito: são, às vezes, tão tênues que poderiam ser comparadas a uma teia de aranha… A organização das falsas membranas apresenta igualmente muitas diferenças: as delgadas são cobertas por uma crosta, semelhante às películas albuminosas dos ovos e sem estrutura própria distinta. As outras, muitas vezes, apresentam, em uma de suas faces, vestígios de vasos sanguíneos entrecruzados em vários sentidos e injetados. São constantemente redutíveis a lâminas superpostas entre as quais são, com muita frequência, interpostos coágulos de um sangue mais ou menos descolorido”.
Entre o texto de Pomme, que conduzia os velhos mitos da patologia nervosa à sua última forma, e o de Bayle, que descrevia, para uma época que ainda é a nossa, as lesões encefálicas da paralisia geral, a diferença é ínfima e total. Total para nós, na medida em que cada palavra de Bayle, em sua precisão qualitativa, guia nosso olhar por um mundo de constante visibilidade, enquanto o texto precedente nos fala a linguagem, sem suporte perceptivo, das fantasias. Mas que experiência fundamental pode instaurar nessa evidente separação aquém de nossas certezas, lá onde nascem e se justificam? Quem pode assegurar-nos de que um médico do século XVIII não via, mas que bastaram algumas dezenas de anos para que as figuras fantásticas se dissipassem e que o espaço liberto permitisse chegar aos olhos o contorno nítido das coisas?
Isto significa que, tratando-se de imagens, é particularmente necessário renunciar às pretensões da metafísica, quando esta forja “um conjunto de concepções tão abstratas e, por conseguinte, tão vastas, que nele caberia todo o possível, e mesmo o impossível, ao lado do real”, enquanto que o pensamento filosófico, para ser preciso, deve constantemente “aderir ao seu objeto”. O elogio das singularidades proposto nestas linhas por Bergson – enquanto se espera por Gilles Deleuze – acabava, como sabemos, por recusar a maneira como quase toda tradição metafísica do Ocidente terá privilegiado a permanência das formas fixas, facilmente pensáveis na sua idealidade, em detrimento das formas moventes, tão difíceis de apreender nas suas durações concretas, nas suas mudanças, nos seus anacronismos e metamorfoses: “Foi assim que a metafísica foi levada a procurar a realidade das coisas acima do tempo, para além daquilo que se move e que muda, fora, por conseguinte, daquilo que os nossos sentidos e a nossa consciência percebem. Desde então, a metafísica já não podia ser mais que um arranjo de conceitos mais ou menos artificiais, uma construção hipotética. Pretendia ultrapassar a experiência; na verdade, não fazia mais do que substituir a experiência movente e plena, suscetível de um aprofundamento crescente, e portanto prenhe de revelações, por um extrato fino, ressequido, esvaziado, um sistema de ideias gerais e abstratas, retiradas dessa mesma experiência, ou antes, das suas camadas mais superficiais. Seria o mesmo que dissertar sobre o envoltório do qual se libertará a borboleta, e pretender que a borboleta voante, cambiante, viva, encontre a sua razão de ser e o seu remate na imutabilidade da película. Retiremos, pelo contrário, o envoltório. Despertemos a crisálida. Restituamos ao movimento a sua mobilidade, à mudança a sua fluidez, ao tempo sua duração”. (citação do mesmo texto de Georges Didi-Huberman, onde ele cita à vontade O pensamento e o movente, de Henri Bergson)
Como escrever senão sobre aquilo que não se sabe ou se sabe mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois, ou melhor, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica.
G. B.: Olha o nível “cientifico” da coisa:“Qual será a imagem de herdeiro que embala suas noites de insônias enluaradas? A do Friedman carioca, devidamente morto e ainda não enterrado, FHC, ou ainda outra figura ainda mais obscura?”“A primavera dos governos do PT substituídos por um grupo aboletado no poder, simplesmente para “parar essa porra”, é difícil de acreditar. Todo o prestígio alcançado para agora essa porra…”“E dane-se também quem diz que isso não é filosófico nem acadêmico, nem tem nada de Foucault e é mero panfleto político. Vá discutir sobre o diâmetro do cú dos anjos com quem quer que seja.”A. L.: Sempre aparecem uns lixos abitolados em política.Rogério Mattos: G. B., você pegou os textos políticos e foi questionar a parte científica. Pega lá então os textos sobre Kepler, uma que se chama “Um Rio e muitas Baixadas”, sobre A Nova Rota da Seda, os Desenganos da Teoria Racial, Como o Homem Vê seus Deuses, etc. São inúmeros. Pincelar duas ou três coisas da primeira página e vomitar é mole.
Rogério Mattos: A. L., você sabe sobre o que você está falando?
Olha só, a eterna mentalidade colonizada brasileira, é comum este pensamento sobre o “nórdico superior” e o “mediterrânico inferior” culturalmente falando, assim sendo as atrocidades dos ingleses e dos franceses eram “necessárias enquanto os ibéricos eram simplesmente “perversos”, e este pensamento se reflete entre historiadores, que são totalmente “francófilos” e pra completar a “martelada na moleira” dos brasileiros, existe atualmente uma proposta do governo usurpador em QUEIMAR ARQUIVOS HISTÓRICOS, já digitalizados”! Como já dizia o velho ditado: “o Brasil não é para amadores”. Realmente!
Obs: nesse post queríamos falar, na verdade, sobre a questão da criação de novas plataformas para o desenvolvimento da humanidade. Utilizaria os estudos do cientista russo Vladimir Vernadsky em companhia do “imperativo extraterrestre” do astronauta Krafft Ehricke. Já que a crítica seria sobre o não caráter científico do blog, “retrucaria” com isso. Mas o texto de Didi-Huberman estava quase “no prelo” e achei que a temática (“tu borboleteias”) servia para elaborar uma resposta. Na verdade, estou devendo a mim mesmo, faz algum tempo, um texto sobre o Vernadsky. Assim, numa outra oportunidade, falarei sobre a necessidade contínua da criação de novas plataformas de conhecimento, o que também corresponde ao nascimento de novas linguagens e olhares.